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23 de Abril de 2024
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    27 de agosto: Um domingo sob ameaças de ataque, tensão e muito medo

    Tanques atravessavam a cidade: iriam defender ou atacar o Piratini? Terceiro dia, sábado, 27 de agosto de 1961

    Nas noites de sábado, Porto Alegre fervilha ao longo de um trecho da Rua da Praia. Lojas entre a rua Marechal Floriano e a Ladeira mantinham as vitrines acesas. As famílias desciam para o centro da cidade para “ver as modas”. Diante da Praça da Alfândega, o Clube do Comércio, os cinemas Guarani e Imperial, o restaurante Capri e a padaria Matheus atraiam intenso footing dos jovens.

    Getúlio Mariante Adamatti andava por ali, loiro de queixo quadrado, 1,90m de altura, 27 anos, cabelo curto, barbeado, perfumado, terno e gravata, como quase todos os homens de então, procurando alguém para namorar. Antes das 21 horas, quando ainda não conseguira nenhum contato de 3º grau com qualquer guria, um caminhão da temida Polícia de Choque passa por ele e um agitado policial, meio corpo para fora da porta, lhe ordena:

    - Te farda e vai para a Guarda!

    Adamatti morava ali perto, num quartinho de pensão na rua Riachuelo, justo ao lado do quartel general da Guarda Civil. Logo estava a postos. Foi selecionado com outros “sete ou oito”, enviados ao Theatro São Pedro. Outros tantos foram para o Tribunal de Justiça.

    Num clima tenso, “um cidadão da Segurança Pública nos ordenou: - Se o Exército atacar o Palácio Piratini, vocês revidem daqui . Se foi e nos deixou ali”.

    Adamatti estava na Guarda há quase sete anos. Viera do Exército, onde chegou a cabo, cabo armeiro. “Eu conhecia todas as armas”. Avaliou a situação. Conhecia o poder de fogo do III Exército. Já os “sete ou oito” guardas civis portavam metralhadoras ponto 30, de pouco alcance, usadas “mais para intimidar tumultos”. Avaliaram a situação, deliberaram e por unanimidade decidiram:

    - Se o Exército atacar, nós ficamos quietos aqui”.

    E trataram de descansar, mas de olho na Praça da Matriz, absolutamente deserta e silenciosa até o amanhecer do domingo.

    Os tanques rasgavam a noite

    Acordamos na madrugada de domingo, 27 de agosto de 1961, com o chão tremendo. Armários, quadros, vidraças, toda a casa vibrava. De fora, um ruído forte, como se fosse um trovão continuado.

    Meu pai saltou da cama, abriu uma fresta da veneziana:

    - São os tanques.

    Os tanques de guerra do que hoje é o 8.º Esquadrão de Cavalaria Mecanizada rasgavam a noite desde o quartel da Ponta da Serraria, zona sul de Porto Alegre, que à época parecia muito mais distante que hoje. Naquele momento cortavam o bairro Menino Deus em direção ao centro da cidade, o que tanto podia significar um cinturão de proteção ao Quartel General do III Exército, quanto um cerco ao Palácio Piratini.

    Meu pai abriu seu guarda roupas e vestiu apressadamente o uniforme verde-oliva, enquanto dava instruções à minha mãe:

    - Se ouvirem tiros, saiam dos quartos da frente, deitem debaixo das mesas, longe das paredes.

    E saiu na mesma direção dos tanques, para apresentar-se e entrar em “prontidão” no Quartel General, sem saber para que lado seus comandantes marchariam: ou se rumo ao centro do país, para enfrentar ou neutralizar o I Exército, ou se para subir para a Praça da Matriz contra o governador Brizola.

    Às 6h da manhã tocam os sinos da Catedral metropolitana, localizada entre o Palácio Piratini e o edifício onde são vizinhos os deputados Paulo Brossard de Souza Pinto e Milton Dutra. Por esse horário o governador, os secretários de Estado e muitos deputados recém haviam encerrado a jornada do dia anterior. Às 3h Brizola havia dado uma declaração à cerca de 200 repórteres brasileiros e estrangeiros de plantão. Pouco depois se recolhera à ala residencial do palácio para um descanso de menos de quatro horas.

    Às 10h08 seu cunhado, o vice-presidente João Goulart o chamava ao telefone, de Zurique, para receber informações do Brasil e terminar confirmando que retornaria ao país, enfrentando a resistência dos ministros militares (marechal Odílio Denys, almirante Sílvio Heck e brigadeiro-do-ar Grün Moss).

    Milhares de homens, mulheres e até crianças na Praça da Matriz

    Em meia hora já estão de volta ao palácio secretários do governo, líderes partidários e deputados federais e estaduais, como presidente da Assembleia, Helio Carlomagno, e o líder do PTB, Sereno Chaise. Será mais um dia de reunião permanente no gabinete do governador. Ouvem de Brizola a informação da disposição de Jango enfrentar o golpe. Essa é a orientação. E passam a planejar o contragolpe em cada uma das frentes de luta.

    Vinte minutos depois Carlomagno sai do palácio pelos fundos e atravessa o pátio que o liga à Assembleia. Entra pelo café, a essa hora já lotado, sobe a estreita escada em caracol e sai diretamente no plenário, o front político, onde o fundamental era explicitar ao país a mais absoluta unanimidade em favor do respeito às regras constitucionais e à democracia. Às 11h10 ele reabriu a sessão.

    O Parlamento estava em sessão permanente desde a sexta-feira, dia 25 de agosto, reaberta e suspensa muitas vezes ao longo do dia, entrando na noite. A galeria e a platéia permanentemente lotadas. O presidente Hélio Carlomagno reiniciou a sessão relatando haver recebido “a solidariedade de todas as classes sindicais e estudantis desta capital, manifestando o firme propósito de defender dentro da democracia as determinações da Constituição Federal”.

    Nessa manhã de um domingo sem Gre-Nal, já havia milhares de homens, mulheres, até crianças na Praça de Matriz e nas calçadas da Duque de Caxias. Apesar disso, àquele horário ainda havia calmaria. Uma movimentação pacífica e espontânea, ainda movida mais pela curiosidade que pela política. Na rua e na praça formavam-se grupinhos que conversavam o dia inteiro, atualizando as informações, ampliando os boatos, animados pela sensação excitante de sentir-se próximo ao centro dos fatos. Naquele pequeno perímetro de um quarteirão, as coisas iriam acontecer. Mas a cada hora, a cada dia, as coisas estavam esquentando.

    Na Assembleia, o deputado Hélio Carlomagno protesta contra o “ato de arbitrariedade contra a liberdade de imprensa”: por ordem do ministro da Guerra, marechal Odílio Denys, as rádios Farroupilha, Difusora e Gaúcha haviam sido tiradas do ar e lacrados seus transmissores, por terem transmitido um manifesto do marechal Henrique Teixeira Lott, ex-ministro da Guerra e candidato derrotado à Presidência da República.

    Da tribuna, o líder do PTB, Sereno Chaise, lê a carta de Lott

    O manifesto do marechal Lott era o assunto único da capa do jornal Última Hora desse domingo. Ocupando metade da página, o título, em letras enormes, era mais um desejo que uma realidade: “Lott assume comando das forças vivas do Brasil para defender regime democrático”. Afinal, após divulgar o manifesto dirigido às forças armadas, publicado na íntegra, o ex-ministro da Guerra fora mandado prender por 30 dias na Fortaleza Laje, na Guanabara, por ordem de seu sucessor, a quem denunciara a decisão de impedir que Jango assumisse a Presidência e de prendê-lo se tentasse retornar ao país. “Chegou a hora de optar entre o comunismo e a democracia. Nada tenho contra a pessoa do sr. João Goulart, mas contra a forma de governo que ele representa”.

    A informação chegara ainda na noite anterior ao Piratini e à Assembleia. Com Lott foram também presos cinco coronéis e um major que estavam em seu apartamento. Em outra residência foram detidos os coronéis Nicolau Seixa, Jeferson Cardim, Correia Lima e Pamplona. Em complemento, todas as emissoras que transmitiram o manifesto foram tiradas do ar. A isso se somava à ordem de censura a todos os jornais e emissoras de rádio do país e aos despachos das agências noticiosas. No estado da Guanabara (atual cidade do Rio de Janeiro), o governador Carlos Lacerda, apelidado pelos petebistas de “o corvo”, ocupava a UNE, empastelava jornais e apreendia suas edições.

    Apesar disso, uma cadeia de radioamadores, redes de telefones e uma malha de informantes nos Correios e Telégrafos assegurava a circulação de informações e o furo à censura. O próprio presidente da Assembleia, Hélio Carlomagno, havia conseguido um rádio militar, para ouvir novidades do Rio de Janeiro. Da Guanabara chegou a informação de que a polícia de Lacerda revistava todos os aviões que pousassem, em busca de Jango.

    Mais informações preocupantes chegavam à Assembleia. Chegara ordem “do Rio de Janeiro” para que todos os navios mercantes atracados deixassem Porto Alegre “imediatamente”. E com eles levantou âncora o contratorpedeiro Baependi, da Marinha Brasileira, que aqui estava para a visita de Jânio Quadros.

    O Legislativo era um caldeirão que aferventava especulações

    Boatos, notícias, que chegavam através dos informes das agências de notícias, trazidos pelas dezenas de jornalistas que rodavam em torno da Assembleia e do Palácio. Se articulava, decididamente, a resistência à violação da regra constitucional sucessória e uma saída legítima e democrática à crise.

    Ainda não havia gabinetes exclusivos dos deputados e todos trabalhavam nas salas de suas bancadas - PSD e PRP no térreo, PL, MTR, PDC, PTB no andar superior do prédio da esquina da Duque de Caxias com a General Auto. Ou reuniam-se nas cinco mesas do café Scalabrin, no térreo.

    E todos atentos ao Quartel General do III Exército, em silêncio político, enquanto todas suas tropas permaneciam de prontidão.

    A Câmara de Vereadores de Porto Alegre, acompanhando a Assembleia Legislativa, também se declarou em sessão permanente. O mesmo haviam feito em Canoas, Caxias do Sul, Novo Hamburgo, Pelotas, Rio Grande, São Leopoldo, Uruguaiana. E o mesmo país afora, como a Assembleia Legislativa de Pernambuco e a Câmara de Vereadores do Recife.

    O deputado Gudbem Castanheira seria o deputado mais “à esquerda” da bancada do Partido Libertador. Quando estudante havia militado na Juventude do PTB, justamente na corrente de Jango e Brizola. Mais tarde, já formado advogado, entendeu que o Parlamentarismo seria a melhor forma de governo e buscou o único partido que defendia esse sistema, e virou maragato .

    A tentativa de impedimento da posse de João Goulart pelos militares assim como que o reaproximou dos antigos amigos, de quem já divergia politicamente. Desceu à calçada da Duque de Caxias e caminhou até o vizinho Piratini para solidarizar-se com o governador adversário, “por entender que ele atuava dentro da lei. "Como advogado, fui até o Palácio para dar minha solidariedade. Falou mais alto que o meu partido a minha profissão de advogado”, diz.

    Na verdade, todos os deputados estaduais gaúchos entenderam que o sucessor legal do presidente renunciante era o vice-presidente eleito. Coisa diferente eram os oposicionistas na Assembleia serem entusiastas dos movimentos do governador Brizola, a quem se opunham. “Era uma posição política”, diz Gudbem Castanheira. Uma coisa era ser a favor da Constituição e defender a posse de Jango; outra era confundir-se com os brizolistas sob o movimento da Legalidade, que terminou contada pelo vencedor de então, como toda História. O repórter do Diário de Notícias, Jayme Keunecke, hoje fala coisa parecida, ao dizer que “não foi bem assim como se contou”.

    A unanimidade da Assembleia se compôs rapidamente. Não por acaso, o líder do PL, Paulo Brossard, fora indicado por todos os partidos para, na noite da renúncia, fazer o discurso que balizaria a posição da Assembleia: pelo estrito cumprimento da Constituição Federal, que previa a posse do vice-presidente no impedimento do presidente. Ao longo do 13 dias pelos quais se estendeu o episódio, nenhum deputado discursou em favor da tentativa de golpe militar. Ao contrário, todos apoiaram o telegrama inspirado pelo deputado Mariano Beck, que sustentou ser necessário, “mais do que antes, uma manifestação aos poderes federais no sentido de ser garantida a Democracia e a Constituição do Brasil”, e redigido por uma comissão pluripartidária composta por por Marcírio Loureiro, Synval Guazzelli (UDN), Naio Lopes (PSD), Paulo Brossard (PL), Mário Mondino e Affonso Anschau. Ainda no domingo, o deputado Hélio Carlomagno telegrafou ao marechal Odílio Denys, Ministro da Guerra, aos presidentes do Senado e da Câmara e aos presidentes de todas as Assembleias Legislativas dos Estados:

    ASSEMBLEIA LEGISLATIVA RIO GRANDE DO SUL VG REUNIDA EM SESSÃO PERMANENTE VG EXPRIME SEUS VOTOS ET SUA CONFIANÇA SENTIDO DE QUE ATUAL CRISE BRASILEIRA SEJA RESOLVIDA DENTRO DA LEI VG DA ORDEM VG DA DEMOCRACIA VG O QUE SÓ OCORRERAH COM POSSE DO NOVO PRESIDENTE DA REPÚBLICA NOS PRECISOS TERMOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL PT

    Ao presidente da Câmara Federal, deputado janguista Sérgio Magalhães, foi também enviado telegrama de “veemente aplauso” por declarar que não receberia nem faria tramitar nenhuma proposta de emenda constitucional que modificasse o artigo 79 da Constituição Federal de 1946, que previa a posse do vice-presidente no impedimento do presidente

    Ao mesmo tempo em que a Assembleia reabria a sessão matinal, o governador movia-se em duas outras frentes simultâneas.

    Às 11h39 um pelotão da Brigada Militar ocupa o prédio da Companhia Telefônica.

    E na 2ª Delegacia de Polícia, na avenida Azenha, o fiscal Del Mestre estava selecionando 14, 15 policiais do temido Grupo de Choque da Polícia Civil, entre eles o alemão Adamatti, como os demais companheiros, que lotaram um caminhão aberto e um jipe. O comboio abriu caminho com sirenes abertas até a rua Caldas Júnior. Chegaram quase que ao meio dia em ponto. As redações dos jornais Correio do Povo e Folha da Tarde estavam desertas, o prédio de quadra inteira quase vazio. “Nos mandaram subir direto para o segundo andar, para os estúdios da Rádio Guaíba”. Ao terminar de transmitir o Correspondente Renner das 13 horas, Mendes Ribeiro abriu a porta do estúdio e deu com uma parede de avantajados policiais com metralhadoras ponto 30 a postos, os quepes vermelhos a indicar que eram os temíveis polícias de choque.

    - Minha gente, já vou” - e desceu pelo pequeno elevador gaiola.

    No térreo, na sala do proprietário da Companhia Jornalística Caldas Júnior desenrolava-se o principal movimento da resistência legalista ao golpe militar: o secretário da Fazenda do governo do estado, Gabriel Obino, entregava a Breno Caldas um ofício do governador Brizola requisitando a Rádio Guaíba, a única que o general Antônio Carlos Muricy não havia tirado do ar no dia anterior, porque não transmitira o protesto do marechal Lott. O governador determinava, ainda, que fosse feita a ligação entre a sede do Governo e os transmissores da rádio, na Ilha da Pintada, pois a rádio passaria a ser operada da sala de imprensa do Palácio Piratini, transmitindo através das ondas médias e curtas para todo país.

    Pouco depois os policiais do Choque foram reembarcados e levados para a ilha, montar guarda aos transmissores e fechar o acesso à ponte do Guaíba, para impedir que alguém tentasse cumprir a ordem do Ministro da Guerra de tirar a emissora do ar. E os bombeiros foram enviados com barcos para impedir um ataque por água.

    Com esse movimento, Brizola começava a vencer o golpe contra seu cunhado, o vice-presidente da República, legítimo sucessor do malfadado Jânio Quadros. E às 14h20 emitia o primeiro comunicado da Rede da Legalidade, sem mediação, diretamente à casa de cada gaúcho e a cada unidade militar do território.

    No início da noite as rádios Farroupilha e Difusora foram liberadas da suspensão de suas transmissões. E logo se integrariam à Rede da Legalidade, comandada pela Guaíba desde o porão do Palácio Piratini.

    O segundo movimento da vitória seria a sabotagem dos aviões da 5ª Zona Aérea pelos sargentos e praças.

    A passeata de estudantes e operários chega à Praça da Matriz

    No meio da tarde a maioria dos deputados está nas sacadas ou nas calçadas do palácio e da Assembleia, assistindo à chegada da barulhenta passeata de “estudantes e operários” à praça da Matriz, depois de atravessarem o coração da cidade, a rua da Praia, subido a Caldas Júnior e a Riachuelo. À frente, duas estudantes carregam uma faixa: “Contra o golpe! Todos à Assembleia!”, assim, exclamativa. Estima-se que 2 mil pessoas estejam naquele momento da praça, ignorando o frio. Cantam, riem, na euforia dos comícios das grandes causas. Sucedem-se lideranças estudantis, sindicais, partidárias em discursos vibrantes, democráticos, constitucionalistas, legalistas, nacionalistas, janguistas.

    Emocionado, às 16h50 o deputado Hélio Carlomagno deixa a praça e desce para o estúdio improvisado da Rádio da Legalidade, nos porões do Palácio, para falar “em nome do Legislativo”: “temos o apoio de todos os cantos do Rio Grande. O senhor João Goulart é presidente em qualquer ponto do país. O poder civil, representado pela Assembleia Legislativa, preferirá deixar de funcionar se tiver que o fazer ultrajado, enxovalhado, aviltado. Confiamos em nosso glorioso Exército para a defesa do poder civil”. *

    É tanta gente que somente quem está sobre a calçada da Catedral, bem junto à rua Espírito Santo, percebe uma grande agitação na lomba. Um grupo grande cerca um veículo, submerso naquela massa de gente. Mas logo uma informação corre como pólvora: o Exército está subindo contra o Palácio! Espera-se o ataque iminente. Rapazes carregam os bancos de base de concreto da praça e os colocam no meio da rua Duque, para bloquear o acesso de veículos.

    A Brigada Militar pede para a multidão dispersar-se. Ninguém atende. Por insistência dos soldados, o mais que admitem é recuar para a praça e liberar a calçada e a pista de rolamento. Alguém grita e logo todos repetem: “a barricada da Constituição é o povo na praça”.

    Às 20h chegou ao Piratini um caminhão com novo carregamento de revólveres e munição para os civis.

    O Piratini tem os portões e janelas bloqueados por sacos de areia desde a manhã. Depois de muito tempo esquecidas, as cortinas de aço que protegem os janelões voltados para a praça estavam baixadas. Em toda a cobertura é visível a movimentação de dezenas de brigadianos entre as metralhadoras pesadas, algumas antiaéreas. Mesmo os civis portam armas no Palácio. Mas isso não intimida a população. Ao contrário.

    Sob esse clima de tensão, pela segunda vez no dia o governador desceu à Secretaria de Imprensa para falar na Rede da Legalidade. É fotografado na escada em caracol com uma metralhadora pendurada no ombro direito, barba por fazer, cigarro aceso. O repórter da Última Hora descreve: “A voz está entre embargada e rouca. Faz um patético apelo ao patriotismo do Exército, pede ao povo que se uma para defender a Constituição”.

    Mas o Exército não apareceu. Uma hora mais tarde, a explicação: um grupo de estudantes viu um jipe militar subindo a Espírito Santo com um oficial. Presumindo que era o início do ataque ao Palácio, os estudantes atacaram primeiro. Cercado, o jipe deu ré e sumiu.

    Momentaneamente aliviados, governador e deputados próximos a ele, como seu ex-secretário Sereno Chaise, voltam a reunir-se no gabinete de Brizola. A praça continua tomada pela multidão, mobilizadíssima, e delibera-se armá-la. Às 20h chegou ao Piratini um caminhão com novo carregamento de revólveres e munição para os civis. Até jornalistas se armam.

    E veio o aviso de Jango: - Dentro de 24 horas estarei no Brasil para assumir o governo do país, ou morrer lutando”.

    No final da tarde o Palácio e a Assembleia foram informados, através do deputado federal Santiago Dantas (PTB-MG), que o vice-presidente já chegara a Paris, onde aguardava vôo para retornar ao Brasil. Dantas fora indicado por Jânio Quadros embaixador do Brasil na ONU três dias antes da renúncia. Não chegou a assumir. Ele havia telefonado para convencer Jango a renunciar. A resposta foi ríspida e carregada da dramaticidade que quem fora ministro do Trabalho de outro presidente vítima de golpe: “Dentro de 24 horas estarei no Brasil para assumir o governo do país, ou morrer lutando”. Aguardava apenas a chegada à Europa de uma comissão de deputados do PTB e do PSD, que o acompanharia no regresso.

    A firmeza do virtual presidente João Goulart e de seu cunhado Leonel Brizola e a irredutibilidade dos chefes militares, somadas à perspectiva de divisão no Exército, apontava para a iminência de uma guerra civil.

    As peças distribuíam-se no tabuleiro ao longo da tarde.

    Foi criado o Comitê de Resistência ao Golpe, instalado no mataborrão , um prédio modernista, de madeira e vidro, no centro da cidade, tão exótico quanto admirado. Logo, formaram-se longas filas para assinar listas de defesa da legalidade e de adesão ao movimento. Em breve iniciaria a distribuição de armas para a população. Nos dias seguintes, milhares de pessoas receberam Taurus e Rossi 38. E, dizem, a maioria devolveu depois que Jango foi empossado.

    Depois de assembleias dos trabalhadores da energia elétrica, ferroviários, comerciários, carris, telefônicos, marceneiros, construção civil, alfaiates, os sindicatos anunciaram: “Posse de Jango ou greve geral!” Começaram os comícios em porta de fábricas na região metropolitana de Porto Alegre.

    O secretário de Educação do estado, deputado licenciado Justino Quintana (PTB), suspende as aulas em toda a rede escolar pública. E o prefeito Loureiro da Silva suspende as da rede municipal.

    Às 20h33 “o governador voltou ao rádio. Antes de sua fala é retransmitida a gravação de sua proclamação de confiança no Exército”.

    Após a breve sessão da manhã, e a longa tarde no Palácio e nas ruas do centro da cidade, às 21h30 do domingo o presidente Hélio Carlomagno reabriu os trabalhos, com a casa lotada. Caberiam cerca de 200 pessoas, apinhadas nos espaços em torno das mesas dos parlamentares e nas galerias. “Num clima de emoção funcionou a Assembleia na noite de ontem”, qualificaria a Última Hora .

    Mariano Beck leu trechos do editorial do jornal carioca Correio da Manhã. E também leu a nota chocha do arcebispo de Porto Alegre, D. Vicente Scherer; “Devemos todos confiar no critério e na ação das autoridades constituídas, às quais está encarregada a defesa da ordem constitucional, a garantia da paz pública e o respeito a todos os direitos individuais”.

    Um apoio importante, mas nem tanto, vem de Pernambuco

    O presidente Carlomagno deu o tom da reunião noturna e levantou a platéia. “Nesta altura houve momento de grande vibração, quando foi lido o pronunciamento do governador Cid Sampaio, de Pernambuco”, contou o repórter da Última Hora . Dissera Cid Sampaio às rádios de Pernambuco: “receberemos João Goulart como legitimo presidente do Brasil. Se de volta do exterior o senhor João Goulart fizer escala no Recife, será recebido como primeiro mandatário da nação e legítimo presidente de todos os brasileiros”. Carlomagno lia, com alegria, que “o governador pernambucano repudiou todas as tentativas de golpe e conclamou o povo nordestino a cerrar fileiras em torno da legalidade: Não acredito que ninguém de bom senso pense em outra solução que não seja a da posse do presidente João Goulart ”.

    A declaração foi mancheteada pela Última Hora e insistentemente trombeteada pela Radio da Legalidade, uma das primeiras notícias. Entretanto, assustado com a repercussão em todo o país de uma entrevista que pretendera de consumo paroquial, ainda no domingo Cid Sampaio desdisse que tivesse oferecido garantias a Jango. Virou pequena nota em página interna da Folha da Tarde na segunda-feira.

    Os discursos da noite do domingo, entrando na madrugada seguinte, expressavam três ordens de interesses: os dirigentes do PTB, seguindo o tom do governador Brizola no rádio, tentavam falar diretamente à consciência patriótica dos militares; os partidos oposicionistas mantinham-se no limite legal - que assuma o sucessor previsto pela Constituição; já o baixo clero do PTB permitia-se a sinceridade e dizia que 1961 era sequência do golpismo de 1945 e das tentativas frustradas de 54 e 55.

    Mário Mondino, Adalmiro Moura, Milton Dutra, Antônio Bresolin, José Zachia, e Suely de Oliveira discursaram em “defesa da democracia e respeito à Constituição”, do cumprimento da ordem legal e do direito do vice-presidente assumir o poder, com “esperança de que a crise seja resolvida dentro da Constituição”. O líder da UDN, Synval Guazzelli, disse que “um golpe seria um retrocesso que muito comprometeria o nosso sistema democrático, que ainda não é adulto”. E garantia que os udenistas gaúchos, ao contrário de seu líder nacional Carlos Lacerda, estavam “coesos na garantia das instituições constitucionais”.

    Já Paulo Couto e Harry Sauer (PTB) vincularam a tentativa de golpe contra Jango às pressões dos “grupos reacionários” comandados por Carlos Lacerda, sua UDN e militares sobre Getúlio Vargas, em 1954, que o levaram “à grande tragédia do suicídio do presidente”. Sauer previa que aqueles “assinaram seu próprio atestado de óbito quando cogitaram o golpe”.

    Osmar Grafulha, com a gravidade correspondente ao momento, disse que “o patriotismo há de superar tudo isso e a Constituição vigorará acima da ambição dos grupos que visam a anarquia”.

    Em meio a isso, Sereno Chaise (PTB) e Moab Caldas (PSD) apontaram a política externa de Jânio Quadros como motivo da oposição das “forças ocultas”. A negativa de apoiar o bloqueio econômico contra Cuba, a condecoração a Che Guevara, o não alinhamento aos Estados Unidos, as tratativas para restabelecer relações com a União Soviética, aproximação ao bloco terceiromundista na Conferência meses antes, em Montevidéu, estariam na raiz das pressões militares e lacerdistas sobre o ex-presidente. Tanto o líder petebista quando o pessedista apoiavam e elogiavam a linha adotada pelo chanceler Afonso Arinos no Itamarati.

    Ameaça de bombardeio, altíssimo grau de temor

    As notícias sobre um possível avanço do Exército sobre o Palácio Piratini e seu bombardeamento pelos caças da Aeronáutica provocavam um altíssimo grau de temor, confessado pela maioria dos protagonistas. A sessão da Assembleia servia, em parte, para a descarga de parte dessa tensão, aliviada em aplausos, vivas e gritos de apoio aos oradores. Mariano Beck (PTB) protagonizou o que talvez tenha sido o ponto de ebulição da noite. Às 23h48 haviam captado uma emissora paulista, que divulgara uma nota do comandante do II Exército, general Araújo Mota. Transcrito taquigraficamente, Mariano leu no plenário o manifesto legalista do comandante do II Exército, causando “intensa vibração, inclusive das galerias”.

    Poucos acreditavam que a crise amainasse sem o desequilíbrio das forças armadas em favor de Jango. Se metade do Exército se manifestasse pelo cumprimento da Constituição, não haveria força suficiente para sustentar o golpe. As maiores forças estavam concentradas no II e no III Exército, sediados em São Paulo e em Porto Alegre.

    Deputados e assistentes vibraram como num gol do Gre-Nal adiado, todos ávidos por ouvir a confirmação de seus desejos de que o explícito apoio de autoridades de peso fosse também decisivo para provocar o recuo golpista. Para reforçar o general em sua posição, decide-se que a Assembleia gaúcha enviará telegrama de agradecimentos por sua manifestação democrática.

    Agora bastava o III Exército aderir. Seria o último movimento do contragolpe, definidor do retorno e posse de João Goulart na Presidência dos Estados Unidos do Brasil.

    Esse era o clima da noite que há muito invadira a madrugada da segunda-feira.

    À 1h55 parte dos deputados está junto dos aparelhos de rádio na Assembleia e parte já está no porão do Palácio Piratini, para acompanhar outra fala do governador na Rede da Legalidade, que pede tranquilidade à população. Na verdade, falava direta e exclusivamente aos militares aquartelados. A corda havia sido demasiadamente esticada à tarde. O recado da disposição de resistência, inclusive armada, fora dado. Agora convinha assoprar a mordida.

    Uma hora mais tarde ainda havia muito povo parado diante do Palácio e da Assembleia. Vários com o radinho de pilhas ligado na Rede da Legalidade, ouvindo marchas militares.

    Sargento saiu pelo corredor do quartel aos berros, puxando o gatilho de uma metralhadora que, por sorte, engasgou.

    Meu pai não vem dormir em casa. Continua de prontidão no QG do III Exército.

    Não sei se nessa ou noutra madrugada, um sargento não aguentou à tensão e pirou. Saiu pelo corredor do quartel aos berros, puxando o gatilho de uma metralhadora INA contra os companheiros de farda. Por sorte a arma engasgara e continuava travada.

    A noite do domingo não terminaria sem outro aumento da pressão. Chegou a informação de que a 5ª Zona Aérea recebera ordens de bombardear o Palácio Piratini. “Avisaram que haveria um bombardeio ao Palácio. E nós, que éramos vizinhos do governador, ficamos apreensivos”, lembra Gudbem Castanheira. Mas havia a decisão de resistir. “Arriscamos tudo. Estávamos dispostos a enfrentar o que viesse”.

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