30 de agosto: "Brasília agora já sabe a verdade sobre o Rio Grande"
Aeroporto Salgado Filho: grupo de parlamentares em frente ao Caravelle da Varig Sexto dia, quarta-feira, 30 de agosto de 1961
Ao reiniciar os trabalhos da sessão permanente iniciada na sexta-feira, o deputado Hélio Carlomagno, presidente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, comunica ao atento plenário que, naquela manhã, comissão de deputados havia viajado a Brasília para, numa verdadeira comunhão do Legislativo gaúcho, sem cores partidárias, debater junto ao Senado e Câmara dos Deputados a preservação dos ideais democráticos e constitucionais do povo brasileiro.
Com a roupa do corpo
O jovem advogado Gudbem Castanheira fazia parte da delegação de 16 deputados que havia embarcado no aeroporto Salgado Filho em um avião Caravelle da Varig rumo a Brasília. Nós achávamos que aqui poderia haver a volta do Jango tranqüilamente e ele assumiria a Presidência da República em Porto Alegre, lembra hoje Castanheira, que pertencia ao Partido Libertador (PL).
Não me lembro quem teve a ideia. Nós fomos para ficar menos de 24 horas em Brasília. Saímos daqui com a roupa do corpo e com diária adiantada de 24 horas para o nosso sustento na Capital Federal, conta Castanheira. A Última Hora , jornal da época, atribuiu a Hélio Carlomagno a ideia de propor a transferência ao Congresso Nacional. A viagem desta delegação parlamentar foi decidida pouco antes pela Assembleia, não dando tempo a alguns deputados sequer de levarem outra roupa que não a do corpo, consta na edição de 31 de agosto da Folha da Tarde, publicação que também noticiou a aventura.
Ameaça de prisão
A excursão resolvida às pressas seguiu com imprevistos no trajeto. Os jornais relatam que, numa escala do voo feita em São Paulo, foi dado um aviso aos deputados para que retornassem a Porto Alegre. Se chegassem ao destino, lá seriam presos. Os deputados eram corajosos, não se amedrontaram com o aviso de serem presos. E o avião seguiu viagem, lembra Castanheira. A coragem citada pelo ex-parlamentar foi requerida logo no desembarque. A ameaça foi cumprida e o grupo, detido por militares da Força Aérea. Eles estavam tentando evitar nosso contato com os congressistas. Eis que o país estava vivendo uma situação anômala, com ameaça de guerra interna, recorda o ex-deputado do PL.
Da prisão improvisada no aeroporto de Brasília durante algumas horas, a comissão de deputados gaúchos só saiu após a intervenção do presidente do Senado, o paulista Auro Moura Andrade (PDS), o mesmo que dias antes havia recebido a carta-renúncia de Jânio Quadros. Ele se dirigiu até o aeroporto e manteve um diálogo com os militares que nos prenderam. Após esse diálogo, ficamos livres e pudemos percorrer, sem susto, as salas do Congresso Nacional, afirma Castanheira.
Situação do RS surpreende congressistas
Segundo o ex-deputado, a ação da comitiva em Brasília durou até a madrugada. Corria a notícia que Porto Alegre seria bombardeada, principalmente o Palácio Piratini. Esses boatos surpreendiam os congressistas federais. Eles sabiam que ocorria alguma coisa no Rio Grande do Sul, mas não sabiam a dimensão do risco. A impressão que nós tivemos é que, com a nossa presença, os congressistas em Brasília ficaram realmente a par do Movimento da Legalidade, conta. Na manchete do dia seguinte, a Última Hora anunciaria: Brasília agora já sabe a verdade sobre o Rio Grande.
O ex-deputado não lembra detalhes de como foi recebida a proposta da posse do presidente em Porto Alegre e da possibilidade de transferir o Congresso para o Rio Grande do Sul. Sabe-se apenas que ela não foi aceita, como comprova a história.
A comitiva
De acordo com a Folha da Tarde de 31 de agosto de 1961, dezesseis deputados integraram a comissão oficial do Legislativo: pelo PTB, Suely de Oliveira, Sereno Chaise, Seno Ludwig, Ney Ortiz Borges, Domingos Spolidoro, Siegfried Heuser e Jairo Brum; pelo PSD, Naio Lopes de Almeida, Euclides Kliemann e Moab Caldas; pelo PL, Paulo Brossard de Souza Pinto e Gudbem Castanheira; pelo PSP, Adaury Pinto Fillipi e Adalmiro Moura; pela UDN, Arthur Bachini, e pelo PDC, José Zachia.
Enquanto isso, em Porto Alegre...
Enquanto a comitiva viajante dava notícias dos acontecimentos que fervilhavam em solo gaúcho aos parlamentares de Brasília, em Porto Alegre a sessão permanente do Parlamento gaúcho era retomada já noite fechada. Eram 21h35 quando o deputado Hélio Carlomagno reabriu os trabalhos. Também pudera: aquela havia sido uma quarta-feira particularmente tensa. O Jornal do Brasil, por exemplo, circulou simbolicamente, em edição reduzida formada por material exclusivamente pago, sem notícias, depois da pressão sofrida. Foi uma forma de protestar contra a censura que se iniciara no dia anterior, quando várias matérias foram proibidas de serem publicadas.
Naquele mesmo dia 30, diante da resistência dos partidos em votarem o impedimento de João Goulart (que assumiria a presidência em razão da renúncia de Jânio Quadros), os ministros militares, vice-almirante Sylvio Heck, ministro da Marinha; marechal Odilio Denys, ministro da Guerra; e o brigadeiro-do-ar, Gabriel Grum Moss, ministro da Aeronáutica, lançam manifesto à Nação , com o claro objetivo de intimidar o Congresso.
Toda esta movimentação refletia-se no Parlamento rio-grandense. A Casa transformara-se no reduto das expectativas pela manutenção da estabilidade institucional. Por volta das 21h40, segundo os registros, o sr. Onil Xavier, secretário convidado, faz a leitura de telegramas vindos de toda a parte do Estado, solidarizando-se com a Assembleia Legislativa, pela sua luta em defesa da Democracia e da Constituição.
Conforme a ata daquela sessão, o deputado Paulo Couto vai à tribuna e lê dois ofícios dirigidos ao sr. governador Leonel Brizola, por moradores do município de São Leopoldo, demonstrando o firme propósito de defender por qualquer meio a Democracia. Ainda segundo o documento, o sr. Alcides Costa, 2º Secretário, assume a Presidência.
E segue: Por cessão de tempo do sr. Athayde Pacheco é dada a palavra ao sr. Cândido Norberto, que aborda o aspecto da maturidade política do povo gaúcho, nas vivas demonstrações de luta e do seu propósito em defender a Constituição e a liberdade Democrática do País.
Pedindo a palavra, o sr. Mariano Beck apresenta projeto de Lei concedendo o título de cidadão riograndense ao General Machado Lopes, Comandante do III Exército. Em 28 de agosto de 1961, o general Machado Lopes, comandante do 3º Exército, sediado no Rio Grande do Sul, havia declarado apoio a Jango.
Ideologias opostas, mas juntos pela legalidade
O governador Leonel Brizola era casado com a irmã do vice-presidente da República, João Goulart. A posição ideológica e o temperamento de Brizola eram bem conhecidos nos meios políticos e militares.
De outra parte, o comandante do 3º Exército, general José Machado Lopes, era exatamente o oposto de Brizola. Influenciado pela propaganda anticomunista levada a efeito nos quartéis desde a Intentona de 1935, manifestava-se radicalmente contra o extremismo das esquerdas mas, paralelamente, se colocava contra a direita radical. Durante toda a carreira, pautou sua vida no respeito à hierarquia, mas, também, e sobretudo, no respeito à legalidade.
Machado Lopes estava à frente da maior guarnição militar do País. Se não tivesse apoiado Brizola teria que ter entrado em combate com a população. Ao enviar os carros de combate para dar proteção ao palácio Piratini, ameaçado de ser bombardeado por aviões da FAB, o general Machado Lopes passou a ser denominado pelas rádios gaúchas como o "general da Legalidade".
Pois são estes dois homens Brizola e Machado Lopes, de pensamentos e atos opostos, que vão unir-se na defesa da legalidade, num esforço para que a Constituição seja respeitada. Ambos colocam em xeque suas posições, correm riscos, mas não transigem naquilo que consideram essencial: sendo o vice-presidente fruto da vontade popular manifestada nas urnas, somente um golpe de estado pode impedi-lo de assumir a Presidência para completar o mandato de Jânio Quadros.
Força gaúcha
Ainda na mesma sessão do dia 30 de agosto, o sr. Synval Guazelli pronuncia-se no sentido de que sejam apuradas as causas da renúncia do sr. Jânio Quadros, e caso seja comprovada a coação que deu motivo a tal, possa o mesmo, dentro dos princípios da legalidade constitucional, vir a ser reempossado no cargo para o qual foi eleito pelo povo brasileiro.
Da tribuna, o sr. José Vecchio tece considerações sobre os verdadeiros propósitos do artigo 177, da Constituição federal, que determina normas que deverão ser cumpridas pelo Exército Brasileiro. Abordou também a necessidade de ser dado cumprimento ao artigo 79, da Constituição Federal, que determina que o vice-presidente eleito substitua ao Presidente, quando do impedimento deste. Já o sr. Antônio Bresolin diz estar empolgado com o movimento que o povo gaúcho vem fazendo em prol da legalidade democrática e constitucional do País.
Antes do encerramento da sessão, em comunicação urgente, o sr. Mariano Beck dá conhecimento ao Plenário de que a Comissão de Deputados gaúchos que viajou a Brasília já se encontrava no Congresso em conferência com os deputados federais, tratando de uma solução para a crise política do País.
Não havendo mais oradores inscritos, o sr Presidente declara suspensa a sessão permanente da Assembleia Legislativa.
Solução institucional
A situação nacional indicava um confronto. De um lado as forças armadas, ainda que divididas, e de outro a opinião pública civil, que, na sua esmagadora maioria, desejava o respeito à ordem constitucional, isto é, que João Goulart, obedecendo ao artigo 79 da constituição de 1946, fosse empossado como o novo presidente do Brasil. A reação do Rio Grande do Sul havia reverberado por todo o País.
A saída do impasse para evitar um desenlace armado seria propor a alteração da forma do regime político, do presidencialismo para o parlamentarismo. Nesse mesmo 30 de agosto, a partir de solução negociada entre Tancredo Neves, representando a classe política, e o general Orlando Geisel, chefe da casa militar de Jânio Quadros, o Congresso dá forma à emenda parlamentarista que seria o anticlímax da crise de agosto.
Fontes consultadas
Atas da sessão permanente da Assembleia Legislativa
http://www.pitoresco.com.br/historia/republ310.htm
Jornais Folha da Tarde e Última Hora de 31/08/61 - Acervo do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa
* Colaboração de Vanessa Canciam - MTB 2060
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