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25 de Abril de 2024
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    Uma lei em memória do Irmão Antonio Cechin

    “Os catadores são os profetas da ecologia e os médicos do planeta”.

    Creio que o falecimento do irmão marista Antonio Cechin, na quarta feira (16), em meio à plena atividade militante em defesa dos catadores de dejetos recicláveis, aos 89 anos, inspira uma homenagem cívica e simbólica da Assembleia Legislativa. Na semana anterior à despedida, precisamente no dia 8/11, o homem alto e magro, com um inseparável boné, esteve nos corredores e gabinetes do Parlamento gaúcho disposto a pressionar os deputados estaduais para acelerar o trâmite de um projeto de lei que ele ajudou a elaborar em 2010.

    O PL 11/2010, que assino, trata da destinação dos resíduos descartados nos órgãos do poder público às cooperativas e associações de catadores que ele denominava de ecoprofetas da paz, desde 1985 quando organizou a primeira entidade na Ilha Grande dos Marinheiros, reunindo o povo que retirava o lixo descartado pela sociedade nas águas do Guaíba. “Estes ecoprofetas são responsáveis por 70% da reciclagem do lixo da cidade. As coletas feitas pelo poder público não representam 15%”, garantia Cechin cunhando a frase lapidar: “Os catadores são os profetas da ecologia e os médicos do planeta”.

    Dez anos depois de ter participado da criação em 1979 do MST, com a compreensão do prefeito de Porto Alegre Olívio Dutra, em 1989, ele criou o primeiro dos 18 galpões que foram erguidos para abrigar recicladores em uma faina profissional que gerou emprego e renda.

    Conforme a proposta do nosso PL, fica assegurada a destinação dos resíduos recicláveis descartados às associações e cooperativas dos catadores de materiais recicláveis do Estado. Para isto, estas entidades deverão ser constituídas por catadores de materiais recicláveis que tenham esta atividade como principal fonte de renda; não possuir fins lucrativos e apresentar o sistema de rateio entre os associados e cooperados. O PL prevê que a administração pública estadual apresentará, semestralmente, avaliação do processo de destinação dos resíduos recicláveis descartados à FARRGS.

    E estabelece que os órgãos e entidades da administração pública estadual direta e indireta deverão implantar, no prazo de 180 (cento e oitenta dias), a contar da data de publicação desta lei, a destinação dos resíduos recicláveis descartados, na fonte geradora, devendo adotar as medidas necessárias ao cumprimento do disposto nesta lei. Também determina que deverão ser implantadas ações de publicidade de utilidade pública, que assegurem a lisura e igualdade de participação das associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis no processo de habilitação.

    Na justificativa do PL, salienta-se que a grande tarefa da humanidade nos dias atuais é incidir cada vez mais no processo de transformar objetos materiais usados em novos produtos para o consumo.

    Aprendemos com Cechin que reciclar significa garantir condições favoráveis para o futuro do planeta. Nas últimas décadas, a produção de embalagens e produtos descartáveis aumentou significativamente, assim como a produção de lixo. O Poder Público está inserido neste quadro e suas estruturas são responsáveis por uma parcela significativa desta produção. A sociedade tem cobrado dos governos e empresas posturas responsáveis atividades como campanhas de coleta seletiva de lixo e reciclagem de alumínio e papel. Incentivar os processos de reciclagem significa, além de preservar o meio ambiente, gerar riquezas. Muitas indústrias estão reciclando materiais como uma forma de reduzir os custos de produção.

    Acreditamos que o Poder Público deve dar a sua contribuição criando condições favoráveis para que os catadores de materiais recicláveis pois homens e mulheres, desde algum tempo, vem dando um grandioso exemplo de superação a condições humanas de vida completamente adversas, exemplo de organização racional do trabalho, de coragem no enfrentamento dos desafios à sobrevivência diante dos constantes perigos à saúde, vencendo inclusive a indiferença social e discriminações relativas ao trabalho que executam.

    Cechin nunca se conformou com a extinção dos barcos na procissão de Navegantes, proibidos pela Capitania dos Portos com a desculpa do mau exemplo da tragédia do naufrágio do Bateau Mouche na baia da Guanabara, no Rio de Janeiro, onde morreram afogados 55 pessoas no reveillon de 1988.

    Sempre alegava que havia um preconceito, isto sim, contra o sincretismo que elegia Iemanjá como a deusa umbandista do desfile nas águas. Criou então, em data diferente, no mês de outubro, a Romaria das Águas, um movimento interreligioso e ecológico em torno do cuidado com as águas, especialmente do Guaíba, e em devoção à Nossa Senhora Aparecida das Águas. Uma procissão por terra marca a passagem de Nossa Senhora Aparecida das Águas por cidades onde são coletadas águas de arroios, fontes e nascentes para serem misturadas, abençoadas e posteriormente jogadas nas águas do Lago Guaíba no dia 12 de outubro, na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre.

    Cechin também nunca se conformou com a subalternidade de Sepé Tiaraju na mitologia histórica gauchesca. Para ele, ninguém mais do que Sepé, do povo primitivo proprietário dos pampas, merecia ser o emblema da bravura do povo rio-grandense. A exclamação “Esta terra tem dono”, Cechin resgata no texto “São Sepé Tiarajú rogai por nós” intrigado com o santo que a igreja não reconhecia, mas que o povo canonizou. “Quando completou 250 anos de martírio de São Sepé Tiaraju, conseguimos por meio do deputado Sérgio Goergen (PT), integrante do MST, um Projeto de Lei para tornar Sepé Tiaraju herói guarani-missioneiro-riograndense. O mesmo aconteceu no Congresso Nacional. Sepé Tiaraju passou a ser herói brasileiro, com nome no panteão da pátria, ao lado de Tiradentes. Aqui no RS nem se noticiou o fato”.

    Era duro com os tradicionalistas. “Este gauchismo de hoje, dentro dos CTGs, não apresenta militância em nenhum sentido para mudar alguma coisa. Para o gaúcho machista, Deus não pode existir porque não pode haver ninguém acima dele, nem mesmo Deus pode humilhá-lo. O pai patrão, típico da grande fazenda, é o cúmulo da blasfêmia”.

    Um dos 15 irmãos de uma família de origem italiana, nascido em Santa Maria, em 1927, Antonio Cechin nunca foi cegamente subordinado aos dogmas religiosos distanciados da realidade cotidiana. Em entrevista ao Sul 21, em 2009, Cechin disse que temos “na Igreja a última monarquia do mundo. O Papa como o único Deus da verdade absoluta, que não divide o poder. Esta igreja não é a que existe na América Latina”. Foi um dos fundadores do MST em 1979.

    Leonardo Boff escreveu, a título de obituário, em seu blog que Cechin era uma referência no Brasil. “Há muitos anos o conheço e visitei o trabalho que fazia com os catadores de materiais recicláveis na cidade de Porto Alegre, cujo centro se encontrava numa das ilhas do Guaíba. Participou como fundador dos principais movimentos sociais e era grande animador das Comunidades Eclesiais de Base. De sólida formação acadêmica, estudou em Paris e trabalhou por anos em Roma. Mas fez uma decidida opção pelos pobres. Durante o regime militar foi preso por duas vezes e na última barbaramente torturado, especialmente fazendo experiências na cabeça.

    Refeito, continuou o seu trabalho junto com sua irmã Matilde até o fim. Ainda nos dias 4,5 e 6 no novembro estivemos juntos num encontro com o grupo Emaus em Correias, Petrópolis. Já víamos os limites de sua saúde. Era uma pessoa de virtudes eminentes. Não tenho dúvidas de que era um santo: tomado pela paixão por Cristo e pela paixão pelos pobres, catadores e papeleiros. Se triste é a partida do amigo deste mundo, alegre é a chegado ao Reino dos justos junto a Deus. Pois é lá que seguramente está junto com os milhares que ajudou ao longo da vida’.

    Nestes seis anos, o projeto de lei da reciclagem perambulou por comissões, até que recentemente, afinal, chegou à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) com parecer favorável do líder do governo. Isto significa que, se os deputados da base do governo quiserem, o PL pode ser retirado da inanição protocolar e ser, enfim, votado no plenário do Legislativo para virar regramento legal no estado do Rio Grande do Sul.

    Embora ninguém soubesse, naquele dia 8, Cechin dedicava-se à missão derradeira na defesa dos catadores pelos quais sempre lutou.

    Assim creio que, em memória da sua trajetória virtuosa, esta legislação que contempla os catadores deveria ser nominada de “Lei Antonio Cechin”.

    Como um modesto reconhecimento ao imprescindível legado deste eterno lutador.

    *Deputado Estadual

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/uma-lei-em-memoria-do-irmao-antonio-cechin/407310441

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